quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Duas Lembranças Latentes de Infância que Eu Provavelmente Não Deveria Estar Contando, mas Como Queimar Filme é Comigo Mesma, Vamos Lá

1. Eu tinha um coleguinha que veio de São Paulo, o Gian. O Gian falava engraçado, falava FUTEBOL, enquanto nós, gaúchos malandrinhos cheios de marra, falávamos "bah, um futibas e pá". O Gian tinha vários irmãos, todos com a letra G: a Giulia, o Giovani, o Gabriel, enfim. Não lembro em que série o Gian entrou, mas nós éramos novinhos. Ou eu prefiro que tenha sido assim. Eis então que lá pelo fim da primeira quinzena de abril, todos da escola foram convocados para cantar errôneamente seu Hino Nacional, na quadra esportiva principal (a única quadra). Lá estávamos todos, separados em filas por altura e sexo. Eu, claro, sempre a última da fileira das meninas por ser a mais alta. Sabe aquela criança nãrds que espichou tão rapidamente a ponto de o coração não ter adaptado o bombeamento de sangue até o cérebro ainda? Pois é. Começa o hino. Tararãrãn, tarararãn rãn tararãrãããn nããã! Eu furtivamente reparo no coleguinha Gian, aquele menininho que veio sabe-se lá de onde e fala um português meio estranho. Ainda não o conhecia muito bem, mas qual não foi a minha surpresa quando ele logo engatou, em uma oitava acima dos demais, um "Ouviram do Ipiranga as margens plááácidas", com um tom respeitoso no rosto. Comentei com o coleguinha da fileira de meninos ao lado: "Nossa, ele mal chegou e já decorou!". Em minha defesa, o coleguinha, alto com pouco sangue no cérebro também, comentou "Pois é, que coisa!". Breves noções de geografia, com Silvinha Pont.

2. Essa é muito pior, mas né, se eu não rir de mim mesma, quem vai? Admiro a minha eloquência. Meus pais são muito amigos de um ex-casal, uma francesa e um brasileiro. Eles separaram-se, mas tiveram uma filha, aproximadamente da mesma idade que eu. A menina, L., foi morar na França com a mãe e, eventualmente, vinha ao Brasil visitar o pai. Sempre que ela vinha, nós íamos em algum parquinho, comer um sorvete, ver um filme, enfim. O bonito da nossa relação é que nós nos conhecemos desde pequenas e só viemos a entender o que uma falava recentemente. Meu francês é chulo, o português dela é ótimo, mas nem sempre foi assim. Há pouco, L. veio passar um período maior no Brasil. Francesa fina, de bom tom, elegante, inteligentíssima, linda. Foi estudar em um colégio daqui e ser vizinha de algumas piriguetes. Claro, desvirtuou-se. Soube pela minha mãe que ela se drogou, se envolveu com um homem mais velho e encheu a cara a ponto de ter sido encontrada meio desmaiada em um banheiro. Finésse misturada com muito sexo e drogas? Virei fãzaça de L., lógico. Com isso tudo ela acabou tendo que voltar para a França, mas tudo bem, continuo admirando ela intercontinentalmente. Bom, isso tudo não vem ao caso, estou apenas contextualizando. Voltemos à parte em que nós éramos pequenas e ainda não entendíamos o que a outra falava. Ela olhava para o meu gato e falava "ooun, chat!". E eu ficava meio que "chá é aquela coisa que serve na xícara, nénão?". E minha mãe, meu pai, todos pareciam compreender. Para mim, ela era um ser de outro planeta. Saíam aquelas coisas estranhas da boca dela e só eu não compreendia. Esperava pacientemente pelo dia em que eu também seria abduzida e sairia falando estranho, até que me veio à cabeça "ok, essa pessoa não é normal. será que ela está ciente das coisas que acontecem ao redor?". Comecei a reparar no seu comportamento. Tenho certeza de que era bem pequena, mas lembro-me de, certa vez, estarmos eu, L. e a minha irmã no banheiro lavando as mãos. Ela lavava com cuidado e olhava estranho para a pia. Comentei de canto, baixinho com a minha irmã: "Será que ela entende que esse é o barulhinho da água?".

#epicfail