sábado, 9 de outubro de 2010

.dst

Eis então que, com o lançamento da nova linha de produtos da firma onde trabalho, seria necessário um avental com a logotipia do bule, para que o demonstrador do funcionamento do artefato vestisse. É uma suma bem grande que envolve alguns segredos industriais, mas como não sou muito chegada nessa parada de segredinho, é um lance que, enfim, passa café. Ia precisar de um magrão usando um avental que tivesse bordado, em dourado, o logotipo da linha. Claro, por que não?, me incubiram de tal tarefa. "Silvia, vai no centro, compra um avental preto e leva-o pra ser bordado, bota aí num pendrive a arte e vai chamando o táxi do convênio enquanto eu pego os endereços dos locais aqui, tá?" Tá. Dar uma banda no centro em pleno horário de trabalho? Meu trampo, seulindo.
Adorava a época em que eu trabalhava no centro. Os prédios, as pessoas, a pressa, o vuco-vuco todo. Adoro o centro de Porto Alegre, me sinto em casa. Fui despacito, com o cigarrinho queimando devagar, até a tal galeria onde poderia fazer o bordado do avental recém comprado. Entrei, a loja era pequenininha, haviam duas senhoras carolas operando máquinas eletrônicas de bordar, o antigo e o atual convivendo em harmonia em uns 4x6m. "Oi, bom dia!", disse eu, sempre com essa péssima mania de ser muito simpática com estranhos. Me olharam de cima a baixo, olharam as roupas, a maquiagem de amy winehouse e o alargador de dois dígitos. Começamos mal.
- Bom dia, no que posso te ajudar?
- Então, eu preciso bordar uma arte nesse avental preto.
- Tem ela aí?
- Sim, aqui no pendrive.
Aí começou uma breve sessão de substituir enter por clics e descer o cursor sem usar o scroll, mas beleza. Ela abriu a arte, que estava em .eps, e olhou bem feio.
- Tá, e é a primeira vez que tu vais fazer essa arte?
- É.
- Eu preciso dela em pontos de bordado.
- Oi?
- Pontos de bordado.
Tudo bem que não entendo nada de bordado, e me orgulho deveras disso, mas de extensões de arquivo eu entendo. O arquivo estava em vetor, se é possível imprimir algo do tamanho da via láctea sem perder a resolução, então deveria haver alguma maneira de exportar o arquivo para uma extensão que a tal máquina de bordar lesse. Tentei traduzir isso em palavras para a senhora.
- Sim, mas ela está em vetor. A máquina lê quais extensões?
- Pontos de bordado.
- Sim, isso eu entendi, mas qual é o nome dessa extensão? Talvez o programa exporte para ela, se a senhora me dissesse o nome, eu poderia ver s...
- Pontos de bordado.
Senti uma veia saltar no pescoço. "Calma, Silvia. Não tem porquê".
- Ok, e como faço para exportar para essa extensão?
- Como faz para fazer isso virar pontos de bordado?- Isso.
- Tem uma mulher em Sapucaia que faz. Ela leva dois dias e cobra vinte reais.
- Ah, ouk (wait... what?). E tem como eu falar com ela agora?
Nesse instante rolou um momento de tensão. Acredito que a senhora carola tenha achado que, em algum acorde de minha voz, faltei com respeito. Duvidei de suas palavras. Cuspi em seu ofício.
- Tem, mocinha (!). Vou ligar pra ela e tu mesma falas então, e ela tira tuas dúvidas.
Gelei. Mas enfim, se a mulher essa de Sapucaia trabalha com a arte de converter arquivos, total leiga ela não seria. Mero engano meu.
- Alô, Katchússia (sem zueira, juro)? Tem uma guria aqui na loja que não entende de arte final querendo falar contigo, explica pra ela como são os pontos de bordado.
"Não entende de arte final". Respirei fundo pela boca. Soltei pelo nariz. É, eu estou já na terceira cadeira de produção gráfica na faculdade, isso soma um freaking ano e meio estudando sobre arte final, e a senhora que tem uma lojinha de bordado no centro vem dizer que eu NÃO ENTENDO DE ARTE FINAL.
- Alô, Katchússia?
- AARÔ??
Ai, meldels. Força.
- Oi, então, me chamo Silvia, queria saber qual a extensão de arquivo que a máquina lê, se não tem como eu mesma exportar aqui.
- É PONTOS DE BORDADO.
Segurei muito, mas muito, um "AH VÁ! É mêrmo? Cê jura?!".
- Sim, isso eu já entendi, mas queria saber qual o nome da extensão, pra eu ver se não tem no programa.
- É DST!
- Quê?- DST!
- Tipo... Sério? D-S-T?
- É! DST!
Fucking kidding me. Minha cabeça pensou "DST é o que tu tem, sua vadia, me diz logo como eu posso fazer pra esta merda de máquina ler esta porra deste arquivo e pára de gritar nesta pica mole deste telefone, antes que eu me esqueça", mas minha voz filtrou um:
- Ah. Ouk.
Desliguei. Entreguei o telefone pra senhora carola, peguei o avental preto de cima do balcão e saí sem falar nada. Eu precisaria daquilo para o dia seguinte, por mais que mandasse a arte para que a sapucaiense transformasse-a em uma doença sexualmente transmissível, de nada me adiantaria, tendo em vista que ela só faria aquilo em um prazo de dois dias. Fora que se eu abrisse a boca para dizer algo à senhora carola, não seria "tchau, obrigada", seria "LEIGA É TU! EU TE ODEIO!". Na verdade, qualquer lugar onde as pessoas te tratam mal não é um lugar onde devas voltar.
No fim das contas, acabei conseguindo um local onde não apenas fariam no dia, como me explicaram que é necessária a confecção de uma matriz para a máquina ler, e que essa matriz, de fato, possui a extensão .dst. Não souberam me explicar o que .dst significa, mas como a máquina possui um número de fontes tipográficas e o que eu queria bordar era um logotipo, era necessária a matriz, para que não houvesse alteração de fonte e a logotipia não se descaracterizasse. Eles mesmos fariam a matriz ali, com o arquivo em .eps, sem que este tivesse que viajar até Sapucaia. Moral da história: não desmereça o conhecimento de um designer, você vai sair perdendo dinheiro.